sábado, 1 de junho de 2013

Verdadeira amizade!


"Aqueles que amam e respeitam o Senhor encontrarão o amigo fiel" (Cf. Eclo 5, 16). Falar de uma experiência vivida de amizade já não é tão difícil como simplesmente escrever sobre a amizade. Os conceitos quase sempre limitam muito esse mistério, portanto, é necessário vivê-lo para ao menos tentar descrevê-lo. As Sagradas Escrituras nos deixaram ricos testemunhos de amizade, pra não falar d'Aquele que viveu a mais profunda e rica experiência de amizade com os homens, Jesus, o amigo por excelência, o verdadeiro referencial para o amor fraterno (1). 

    O Primeiro livro de Samuel, capítulo 18, tem uma das mais belas experiências de amizade das Sagradas Escrituras. Muitos ao longo da história já o atestaram e escreveram sobre essa amizade: trata-se de David e Jônatas (2). Diante deste relato bíblico podemos afirmar que existe uma vocação à amizade. Não só a história da Filosofia Clássica ou a história da Igreja (3) nos evidenciam tal verdade, mas também e, principalmente, o contexto bíblico em que se foi formando o Povo de Deus com o registro de suas experiências. Diz a Tradição Cristã que, nas Sagradas Escrituras, a amizade de David e Jônatas ocupa um lugar privilegiado. 

    David e Jônatas eram dois homens de Deus, mas traziam a "marca da imperfeição", do pecado, e os apelos interiores quanto às questões de nobreza. David provinha de uma família humilde, porém, tinha consciência disso e era um homem temente a Deus (4), enquanto Jônatas era filho do Rei Saul que, mesmo sendo descendente de uma das menores tribos de Israel, Deus o havia constituído chefe do seu patrimônio (5). A mão do Senhor estava sobre ele e seu filho Jônatas (6). Interessante é observar que mesmo quando a mão do Senhor não pousar mais sobre Saul, Jônatas demonstrará que sua amizade com David não dependerá de garantias humanas e terá sido assim desprovida de interesses. É muito belo observar essa realidade e dela tirar uma lição de vida para as experiências de amizade nos dias atuais.    

      Jônatas realiza o seu chamado a ser amigo de maneira exemplar: "Assim que David terminou de falar com Saul, Jônatas se apegou a David e começou a amá-lo tanto quanto a Si (...) Então Jônatas fez aliança com David, porque o amava como a si mesmo. Jônatas tirou o manto que vestia e o entregou a Davi, assim como suas vestes, até mesmo sua espada, seu arco e seu cinturão" (I Samuel 18, 1-4).Como vemos, os dois selam uma aliança, "Berit" (7), porque se amavam como a própria alma ou, como diz a Filosofia Clássica, "amor dedicado ao outro que traz como que o meu próprio coração" (8). Interessante ressaltar que a Aliança do "Berit" dava também um caráter jurídico á relação. A Benção que um concedia ao outro fazia com que eles se acolhessem numa relação nova, numa espécie de consangüinidade. Daí a clareza e a riqueza com evidencia isto o livro dos Provérbios quando diz: "existe amigo mais fiel que irmão" (Pv 18, 24). 

São esses laços de fidelidade interior ao outro, acompanhados da experiência de que Deus é o autor dos encontros que salvaguardará e confortará a amizade nos momentos de prova, de crise, de silêncio e de purificação (9). A amizade tem suas exigências que são ulterior a uma dedicação de sentimentos, mas chega a necessitar da disposição para dar a vida pelo amigo. Esse dar a vida pelo amigo consiste na capacidade de renúncia dos interesses egoístas, na fidelidade aos seus segredos sem ser condizente com a mentira e o pecado, e sem desistir do amigo quando suas fraquezas parecem ser um empecilho para a relação. O dar a vida é viverem juntos esse tempo de purificação tão necessário para a amizade, libertando-a da escravidão das concupiscências (10). Jônatas exerce para com o seu amigo David exatamente como aqui descrevo. Nele o amor dedicado ao amigo David foi mais forte do que qualquer interesse, inclusive, foi capaz de renunciar aos interesses do seu pai Saul para ser fiel ao amigo. Lembro assim o que disse o filósofo existencialista, Gabriel Marcel: "O homem é livre quando é disponível". 

Encontramos na liturgia das horas a expressão desse mistério da renúncia de Jônatas como fruto de quem perscrutou o coração do amigo, viu nele a face de Deus e crer nos desígnios do Senhor acerca do amigo: "Jônatas, jovem de grande nobreza, sem olhar para a coroa régia nem para o futuro reinado fez um pacto com David, igualando assim, pela amizade, o súdito ao senhor (11). Deu preferência a David, mesmo quando este foi expulso por seu pai o rei Saul, tendo de se esconder no deserto, como condenado à morte, destinado à espada. Jônatas então se humilhou para exaltar o amigo perseguido: Tu, são palavras, serás rei e eu serei o segundo depois de ti. Que espelho estupendo de verdadeira amizade! Admirável!" (12). Aristóteles é o filósofo que mais escreveu sobre a amizade humana, inclusive, deu um salto maior na compreensão do mistério da amizade segundo o que pensava o mestre Platão (13). "No amor – pensava o filósofo – o amigo deve ser capaz de chegar até ás últimas conseqüências, a ponto de doar não só os próprios bens, mas também a própria vida pelo amigo". Com toda admiração e respeito ao que pensou Aristóteles, é-nos indispensável ressaltar que a sublimação deste gesto de "amor oblativo" só se toma forma plena em Jesus Cristo. O dar a vida pelos amigos tem, em Jesus, um valor infinitamente superior ao que se pensaram os filósofos de todos os tempos.  

Isso se dá porque, no plano da salvação, o amigo que sacrifica a vida pelo amigo a ponto de amá-lo ao extremo, seja ele pecador ou justo, é o homem-Deus, Jesus Cristo. A decisão de amar livremente é acompanhado e impulsionado pelo desejo de amar, como fruto da ação divina. Quando o amor fica apenas no plano dos sentimentos é um amor superficial que tão rapidamente pode se corromper, ser negociado pelas nossas próprias inclinações e concupiscências. Esse amor se torna ainda infantil, sem estabilidade, impossível de suportar as purificações necessárias. Não há amizade se não há uma participação mútua (reciprocidade), embora o amor de Deus não nos falte quando o ignoramos. No entanto, já não podemos chamá-lo de Pai e de amigo se não correspondemos a esse amor. 

O amor de Deus "necessita" da nossa colaboração para que seja em nós "força transformadora, fonte de felicidade e salvação". Só então o meu amor tem força de me impelir ao outro para construir com ele fraternidade. É o amor como dom e como decisão que pode construir comunhão, revelar – segundo Bento XVI – o parentesco até então desconhecido, podendo então reconhecer juntos que somos irmãos. O Santo Padre clareia bem o que estou tentando dizer: "Realidades humanas não existem sem o homem, sem o empenho livre do seu espírito e do seu coração (...). Do mesmo modo como a fraternidade é amor, também é um fato profundamente humano uma parte daquela humanidade de Deus (Tt 3, 4) que aparece em Cristo, para nos fazer verdadeiramente homens, para sermos filhos de Deus" (14). É Cristo o único que pode dar sentido aos atos humanos e aos laços de fraternidade. É contemplando e fazendo a experiência da misericórdia divina ao logo da história da Salvação, que podemos compreender quão grandes é o mistério da fraternidade e da amizade na vida de Jônatas e Davi. A radicalidade do amor e da amizade vivida entre eles foram apenas prefiguração do amor e da amizade com que Cristo nos ensinaria a viver com Ele e com o Pai.

Fonte: www.comshalom.org

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